quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Conto erótico

Legenda: foto tirada em San Sebastian, 2004, no âmbito do projecto artístico Mugatxoan, de colaboração entre Serralves e Arteleku, neste caso uma instalação de Nelson Guerreiro

O passado envelhecido em pétalas de rosa
Nota: publicado no Jornal de Letras em... 2006? (algures por essa altura...)


Recuperar a cidade dos afectos. Reconstruir a arquitectura dos suspiros. Seguir o caminho da pele. Entregar-me na tentação delinquente da ternura. Revejo o mapa da casa. Os quartos. Os risos. A sala. As refeições. A cama. O sexo. A cama. Nus. Os corpos enroscados. A cama. As costas voltadas. A cama. Os lençóis vazios. A cama.
A vida abandonada à pressa.
Desajeitada.
Os restos
comida nos pratos.
Deixar tudo.
As paredes mortas.
A cama desfeita.
A Puta sorri.
O hálito dos cadáveres apodrecidos. As esquinas. O sentimento amarelecido. O tapete gasto. O cheiro a mofo. A traça. O bolor. A ruína dos afectos. O monumento à morte do amor. O espectro do corpo desaparecido. A cruel distância do passado recente do presente passado. O fechar os olhos para poder voltar a ver-te ali
ali
na cama por fazer
nos lençóis que aquecemos
no nós reencontrado
no cheiro da comida ao lume
o chá de pé de cerejeira envelhecido em pétalas de rosa
o vinho
o beijo com o travo amargo da despedida
A Puta a fumar.
O desprezo.
o encostar em ti o corpo cansado para adormecer a sorrir depois de te reencontrar nos lençóis quentes sob o efeito do vinho e o cheiro do chá de pé de cerejeira envelhecido em pétalas de rosa
E tudo passado.
E tu passado.
E eu presente.
As lembranças em cacos.
Ela sobe à árvore mágica, morada de brincadeiras.
Enrosca-se lá dentro. Há um cantinho particularmente silencioso, onde só se escuta o assobio doce das folhas que deslizam no baloiço do silvo verdejante do vento nocturno. O corpo tem a consciência de que se recolhe para o interior, como se a pele, os braços, os músculos, os seios, as nádegas, fossem parte de um embrião que se enrola sobre si próprio e a porosidade sentisse os cheiros da carne íntima que se cola aos lábios. Se te tocares, podes sentir o odor inebriante do perfume sensual do sexo. Estás sozinho?
Há uma voz que vai diminuindo e se aproxima, baixinha, baixinha a voz que se baixa para se aproximar de ti. Também houve o tempo das cadeiras de baloiço. Das sombrinhas e dos sonhos das princesas. Dos mundos que existem no outro lado dos espelhos. Houve um tempo de uma palavra.
Ela sorri.
O rosto ganha o tom da cereja. A ruborisidade doce do tempo que passou sobre as pétalas de rosa.
Morangos.
Dias de sol.
O cheiro a café acabado de fazer de manhãzinha.
A ternura da inocência e ela leva o dedo indicador aos lábios.
Levanta as saias, baixa as cuecas, e leva o dedo indicador aos lábios. Acaricia-os. As pétalas de rosa envelhecidas. Lentamente. Com as saias levantadas e as cuecas caídas no chão, por cima dos sapatos vermelhos de salto alto, em cima de uma cadeira sobre um chão de tábua corrida de madeira, o dedo indicador empreende uma viagem de descoberta por dentro dos lábios que se abrem para o receber num beijo húmido.
Ele segue-lhe os gestos.
Brincas?
O que pergunta Ele?
Brincas?
Nos olhos dele que perseguem os olhos e os gestos dela está todo o mundo de tentação que contém o desejo proibido do tempo da inocência. O passado da ausência.
Ela baixa os olhos num sorriso.
A Puta cruza a perna, sem pressa.
A Puta esquece-se do sorriso que lhe prende a boca semi-aberta por onde vai deslizando um fio de saliva.
Ele desvia o rosto mas mantém-se atento a Ela. De soslaio.
No cimo da casa na árvore estão os miúdos.
Houve um dia em que Ele lhe quis experimentar o paladar da textura da pele. Aproximou-se o suficiente para lhe sentir o cheiro. Ela pressentiu-o. Ela tremeu. Ele hesitou. Mas nesse instante em que Ela o pressentia, o tremia e Ele hesitava, Ele sentiu que tinha a curva dos seios d’Ela por entre as palmas das mãos. Crepita-lhe o cheiro a queimado que lhe arde na ponta dos dedos e enche de labaredas a carne em desejo. O abandono do prazer que se dilui nos lábios de riso tentação. Fio de sangue escorre-lhe na melancolia do tormento aquoso da juventude. Espreita-a por entre as páginas do livro desnudado das palavras descarnadas que reclamam a ausência do teu sexo devassado no desvario da vida toda consumida em doses de ferrugem e de cinza estilhaçada por entre um gozo ácido do tormento de te descobrir de expressão neutra sem perdição desses dias de temperamento mais descontrolado em que se lançavam no precipício dos braços um do outro e se deixavam ficar a descobrir que entre uma coxa e um umbigo há todo um território de pele que se quer de novas texturas e arquitecturas arquejantes para dar um paladar à língua que a perscruta na busca de um caminho novo por entre sentidos que podiam estar resguardados num adormecimento gentil e desordenado que suspira o arfar desse estar embrenhado por entre as pétalas que foram caindo e guardadas na caixinha de madeira que tem o tacto do cheiro à memória dos corpos abandonados no esquecimento dos corpos que renegam o abandono dos corpos abanadonados no esquecimento. São ritmos nocturnos por entre ruas mal iluminadas e saias gastas por cima de ancas roçadas e incendiadas de suspiros e falsos pudores.
Depois Ela põe-se de tutu e de bicos de pés e Ele, miudinho, esgueira-se para baixo das saias d’Ela. Ela abre as pernas e dança só para Ele. Por baixo das saias d’Ela, o mundo d’Ele é mágico. Uma caixinha de música abre-se no jogo de espelhos do rodopio sem fim. Na casa de madeira da árvore, eles voam para um país encantado. Ela estica-se para a frente. As nádegas abrem-se e Ele encolhe em silêncio a vaidade. Repousa sobre o sexo a descoberto no corpo inclinado para o chão sem cuecas de renda branca transparente à vista. Procura janelas nas casas acotoveladas para espreitar lá para dentro e descobrir as vozes que se aproximam da vertigem alucinante do êxtase e recorda o ritmo dos dias rápidos e das noites entristecidas na solidão do corpo esquecido por cima de uma cama fria.
A Puta ri-te
no instante em que te vens debaixo das saias de tutu branco enquanto Ela se inclina ao chão em bicos de pés nos sapatos de salto alto vermelhos em cima de uma cadeira numa fila de cadeiras com sapatos de salto alto vermelhos gastos. Ela nunca soube. Mas a Puta sentiu-te quando te sentiste que finalmente entravas n’Ela. Lembras, no momento do orgasmo, a jarra de flores de plástico por cima do naperon de rendinha branca na camila velha na sala minúscula na casa do bairro antigo de ruelas apertadas. Lembras a cidade que se invade de pregões e cantigas de outros tempos. As vidas privadas que atravessam as paredes indiscretas. Os lençóis de linho bordados à mão. O lixo acumulado na rua e os cães a rondar, no farejo das sobras dos que apuram o dom do desdém. As emoções desarrumadas no silêncio do quarto que cheira a mofo. É outro, este, o odor inebriante a morada da perdição com o mijo entranhado nos lençóis, os mesmos onde sacias a sede desordenada que te bate no peito a pulsão dessa incontida humidade do suor a sémen. A Puta descai a cabeça para o lado. O cabelo espalhado por ali. Os ossos dormentes. O perfume a desinteresse. A vida de três tostões. Os sapatos enlameados. Os saltos partidos, encravados numa fenda no passeio esburacado percorrido à pressa. As meias de licra malhadas. O olhar desgrenhado. Os becos de sombras que se aquietam à tua passagem. O esperma que deixaste como rasto de nómada que sussurra a penumbra do movimento discreto do dedo indicador dela que foge para baixo das saias brancas e dos lábios suculentos. E por baixo da saia de tutus vislumbras um céu enublado de algodão doce e livros de areia, enquanto limpas a flauta que pensaste tocar para ela, para te perderes na cidade dos amola-tesouras que prenunciam a chegada da chuva e o cheiro às noites de remorso nos despojos das montanhas de pedra de calçada que percorres ofegante envelhecido na seiva que te escorre da língua.
O peso das palavras caladas.
Na cidade dos afectos
em ruína
passeiam-se os turistas do silêncio
que visitam os destroços de uma arquitectura amorosa arrasada.
Ela na casa da árvore de tutus e bicos de pés. E Ele na casa da árvore por baixo d’Ela de tutus e bicos de pés. A Puta já nem ri. Veste-se e sai porta fora a deixar um rasto de beatas e cinza de cigarro fumado com desatenção. Ele sozinho encolhido nos lençóis encharcados de mijo, suor e esperma. Queres desabitar a lágrima que acolhe o rosto. Já não escreves nem beijas a superfície do amor.
Tudo o resto repousa no cemitério dos sentidos adocicados que envelheceram,
cedo demais,
em pétalas de rosa secas.

Claudia Galhós

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